Achei belíssima a edição comemorativa dos cinquenta anos da publicação de “Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?“. A arte gráfica é primorosa; as ilustrações de David McKean, Peter Kuper e outros são, por si só, um colírio para os olhos. Acompanham textos de acadêmicos e intelectuais – dois americanos, um argentino e um brasileiro, o tradutor – discorrendo sobre aspectos variados do trabalho e do legado de Philip K. Dick, bem com uma carta e uma entrevista do autor. Ainda que o conjunto seja desigual, com destaque negativo para o artigo dos dois acadêmicos americanos,[1] é impossível não concluir a leitura do livro sem uma visão mais ampla do universo “dickiano”.
Embora tenha visto o filme de 1982 várias vezes ao longo do tempo, é a primeira vez que me debruço sobre o trabalho original. Com isso pude enxergar os personagens Deckard, Batty, Pris e Rachel por novos ângulos, dando uma nova dimensão à trama. Descobri também as enormes diferenças entre o filme e a obra. Se no primeiro os androides buscam, de modo bastante palpável, ampliar a própria expectativa de vida, na segunda há uma busca por transcendência, uma vez que a comunhão universal proporcionada pelo “mercerismo” permanecia restrita ao humanos. Ou seja, o livro tem uma dimensão metafísica que Ridley Scott preferiu ignorar.
Há várias outras diferenças: Deckard é casado e fisicamente desinteressante; Polokov e Luft são substituídos, no filme, por Kowalski e Zhora, que desempenham papeis bastante diferentes; vários outros personagens, como Garland e Resch, saem de cena. Aspectos inovadores como o “sintetizador de ânimo” e a “caixa de empatia” – esta última funcionando como um canal de acesso ao arrebatamento do “mercerismo” – também não foram explorados por Scott, que optou por uma abordagem enxuta, marcadamente inspirada no estilo noir dos anos quarenta e cinquenta.
No geral, considero que o livro é menos impactante que o filme. Se, por um lado, os escritos de K. Dick primam pela originalidade, por outro, pecam pela simplicidade literária e pelo improviso narrativo. Ele sabidamente escrevia de modo frenético, impulsionado por anfetaminas. Somente em 1966, quando escreveu “Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?”, p. ex., como apontado pelo tradutor, o autor redigiu mais três outros e publicou outros três. A meu ver, isso explica a técnica de redação sem qualquer rebuscamento e as soluções ad hoc para momentos-problema da trama. Efetivamente, K. Dick passa longe, apenas para citar dois dos seus conterrâneos, do rebuscamento de Walter M. Miller e do rigor matemático de Isaac Asimov. Alguns dos atalhos e dos becos sem saída utilizados:
- Como Deckard descobriu em alguns poucos minutos que Polokov era um androide se o modelo Nexus 6 era quase indistinguível dos seres humanos?
- Como o Departamento de Polícia de São Francisco soube que oito androides tinham se refugiado na cidade? Isso tinha ocorrido há muito ou há pouco tempo? Se foi há muito, como pode o departamento de polícia de Garland permanecer ignorado? Se foi há pouco, como este, Luft e Polokov tiveram tempo para se tornar, respectivamente, inspetor do departamento paralelo, cantora de ópera e membro da WPO (World Police Organization?)
- Como Resch pode operar, mesmo sendo humano, no departamento paralelo por um período de tempo indeterminado, mas que não poderia ser curto?
- Que tipo de vínculo havia entre Rachel e os androides fugitivos?
- Como os androides tomavam conhecimento das mortes dos seus correligionários? Teria sido por meio de Rachel?
- Por fim, como o Departamento de Polícia descobriu o paradeiro dos três últimos androides, que estavam justamente tentando não deixar rastros?
Essas e outras lacunas se devem justamente a ausência d um planejamento prévio, o que seria condizente com o modus operandi do autor. Isso, porém, não lhe tira o mérito, vale a pena reiterar, da absoluta originalidade do seu trabalho, propondo que excitam a nossa imaginação ainda hoje.
Nota: também publicado no Goodreads > https://www.goodreads.com/review/show/4656581093.
[1] Vejo algo de paradoxal em autores que associam a pós-modernidade a uma leitura “marxista” da realidade, a mais novecentista das escolas analíticas.