Ana “Monroe” ou Marilyn “de Armas”

Ana de Armas em “A Malvada” (“All About Eve”, 1950).

“Blonde” (2022) é uma versão altamente ficcionalizada da vida de Marilyn Monroe (1926-1962). Não posso dizer que seja imperdível, mas os anos de ouro de Hollywood, com o seu tanto de magia e de abusos, sempre despertam o meu interesse.

Especialmente fascinantes são as reedições de filmes da época, na qual Marilyn é digitalmente substituída por Ana de Armas. Acima, p. ex., a última aparece ao lado de George Sanders (1906-1972) em “A Malvada” (“All About Eve”, 1950).

Para quem lembra de “Cliente Morto Não Paga” (“Dead Men Don’t Wear Plaid”, 1982) ou “Zelig” (1983), é impressionante o quanto as técnicas de edição de imagem avançaram no passado recente.

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Wannsee e o Direito Contemporâneo

O telefilme “Conspiração” (2001), coprodução da BBC e da HBO, está disponível na HBOMax. O tema é a Conferência de Wannsee, ocorrida em 20/01/1942, na qual dirigentes do regime nazista deliberaram, racional e pausadamente, sobre a melhor forma de eliminar a população judaica em solo europeu. Foi nessa reunião que decidiram massificar o uso das câmaras de gás, com Auschwitz funcionando como ponto fulcral do extermínio em escala industrial de milhões de civis indefesos.

Um filme importante. Acredito que ainda vivemos à sombra desse evento trágico. A meu ver, boa parte da jurisprudência erigida no Ocidente no pós-guerra é um esforço justamente para evitar que maiorias circunstanciais voltem a exibir comportamentos psicóticos, com desfechos homicidas, como naquela ocasião. Com isso, introduziram formas mais ou menos intrusivas de tutela do corpo social em defesa de grupos sociais vulneráveis.

Paradoxalmente, os rompantes populistas que hoje varrem esse mesmo Ocidente podem ser uma reação à essa tutela, que, ao estimular a multiplicação de identidades, privaria as ditas maiorias dos instrumentos para forjar uma narrativa comum, ainda que nunca total. A impossibilidade prática de um equilíbrio estável e pacífico sobre regras básicas de convivência social parece ser uma maldição da nossa espécie.

ADENDO

Trata-se de tema que pode ser ampliado substancialmente. A meu ver, até por pressão da propaganda soviética, a elite americana se reconheceu nos preconceitos nazistas e não gostou do que viu. Após longo processo evolutivo, o caráter pragmático do direito consuetudinário daquele país ganhou uma dimensão jusnaturalista, mas sem as amarras processuais do direito romano. Com isso, um direito reforçador dos hábitos e valores da maioria se transmutou em um direito “evangelizador”, que tem como objetivo justamente restringir os aspectos nocivos desses hábitos e valores.

No entanto, como o mundo moderno lida mal com situações ambíguas, a fronteira entre o que é salutar e o que é nocivo se mostrou permeável a pressões de vários grupos de interesse, agora juridicamente legitimados no seu status de vítimas em potencial de uma maioria sob permanentemente suspeita de perversão. Como não poderia deixar de ser, os estamentos burocráticos cultivados pelo direito romano acabaram vendo nesse desdobramento uma nova oportunidade para amealhar ainda mais poder sobre as sociedades latinas, especialmente entre nós, com seu gritante desequilíbrio entre Estado e sociedade civil.

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Crime e Ideologia

Cidadão X” (“Citizen X”, 1995) é um telefilme com grande elenco, produzido pela HBO, sobre o assassino serial Andrei Chikatilo, o “Açougueiro de Rostov”, responsável por pelo menos 52 homicídios no período de 1979 a 1990.

A trama oferece um vislumbre (novelesco, claro) do universo da União Soviética. Na foto, o investigador abnegado (Stephen Rea), mesmo contando com a simpatia do seu chefe imediato (Donald Sutherland), submete as suas suspeitas e preocupações ao crivo do conselho político da cidade. O resultado é uma investigação que acaba se alongando por oito anos, ao custo de dezenas de vidas, principalmente crianças.

Vejo um claro paralelo com a minissérie “Chernobyl” (2019), também da HBO. O quadro técnico altruísta e o apparatchik bem intencionado, administrando os egos e os tabus de uma estrutura de poder que, no embate entre o mundo real e os preceitos da cartilha partidária, prefere estes últimos ao primeiro. Disponível na HBOMax.

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Telemarketing Marxista-Leninista

Antes de “Guerra nas Estrelas” (1977), George Lucas redigiu e dirigiu “THX 1138” (1971), sobre um futuro distópico no qual amor (LUV), pecado (SEN) e sexo (THX) seriam proibidos. Um mundo voltado para a maximização da eficiência coletiva por meio da minimização da individualidade.

Foi um fracasso de bilheteria, mas se tornou cult nos anos e décadas seguintes. Trata-se de um filme com desenrolar lento e com pouco apelo visual, mas com muitos detalhes fascinantes.

Em duas cenas (vide foto), o protagonista recorre a um confessionário automatizado. Enquanto ele expõe as suas angústias, as respostas-padrão se sucedem. Um dos desfechos, em especial, combina de modo muito sedutor marxismo-leninismo com telemarketing:

Você é um verdadeiro crente. Bênçãos do estado, bênçãos das massas. Tu és um súdito do divino. Criado à imagem do homem, pelas massas, para as massas. / Sejamos gratos por termos comércio. / Compre mais. Compre mais agora. Compre mais e seja feliz.

Consigo imaginar algumas figuras públicas repetindo essas mesmas palavras nos dias de hoje. A versão remasterizada de 2004 está disponível na HBOMax.

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O Anexo de Metas Fiscais e o Novo Arcabouço

O § 1º do art. 4º da Lei Complementar 101/2000, conhecida como Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), estipula que o Anexo de Metas Fiscais integra o projeto de lei de diretrizes orçamentárias (PLDO) enviado anualmente pelo Poder Executivo. Esse anexo deve estabelecer as metas anuais relativas a receitas, despesas, resultados nominal e primário e montante da dívida pública para o exercício a que se referirem e para os dois seguintes.

O novo § 5º desse mesmo artigo, introduzido pelo Projeto de Lei Complementar 93/2023, com o novo arcabouço fiscal, contudo, exclui a União do disposto no § 1º. Ou seja, o anexo em questão deixaria de integrar o PLDO. No entanto, o novo art. 9º-A, igualmente inserido pelo recém citado projeto, volta a se referir ao Anexo de Metas Fiscais como um dos componentes da LDO, mas limitado à definição da meta de resultado primário.

Assim, em termos da documentação requerida, embora formalmente incongruente, nada muda. Há, porém, perdas em termos do conteúdo, pois o § 1º do art. 4º é menos detalhado que o caput do art. 9º-A, e de pelo menos duas remissões da LRF às metas contidas no anexo, quais sejam:

  1. o art. 5º requer que a PLOA contenha demonstrativo da sua compatibilidade com os objetivos e metas tratados no § 1º do art. 4º;
  2. o art. 17, § 2º, estabelece que o ato de criação ou aumento de despesa obrigatória de caráter continuado deverá ser acompanhado de comprovação de que as metas tratadas no § 1º do art. 4º não serão afetadas, exigindo-se compensações na forma de aumentos da receita ou de reduções da despesa.

Outras situações são mais ambíguas. O § 2º do art. 4º, p. ex., discrimina os elementos necessários do Anexo de Metas Fiscais, quais sejam:

  1. a avaliação do cumprimento das metas relativas ao ano anterior;
  2. o demonstrativo das metas anuais, comparando-as com as fixadas nos três exercícios anteriores e evidenciando a consistência delas com as premissas e os objetivos da política econômica nacional;
  3. a evolução do patrimônio líquido, também nos últimos três exercícios, destacando a origem e a aplicação dos recursos obtidos com a alienação de ativos;
  4. a avaliação da situação financeira e atuarial do FAT, do RGPS, do RPPS e dos demais fundos públicos e programas estatais de natureza atuarial;
  5. f) o demonstrativo da estimativa e compensação da renúncia de receita e da margem de expansão das despesas obrigatórias de caráter continuado.

O modo como os parágrafos estão encadeados deixa claro que esse detalhamento se refere ao anexo previsto no parágrafo anterior. Não é auto evidente que o anexo tratado no novo art. 9º-A terá as mesmas características por simples homonímia.

Outras ambiguidades:

  1. o § 1º do art. 1º define que a gestão fiscal responsável requer, entre outros requisitos, o cumprimento de metas de resultados entre receitas e despesas;
  2. o art. 14, inciso I, exige que a concessão ou ampliação de renúncia de receita seja acompanhada de comprovação de que as metas previstas no anexo da LDO não serão afetadas;
  3. o art. 16, § 1º, inciso I, especifica que será compatível com o PPA e a LDO a despesa que se conforme, também entre outros requisitos, com as metas previstas nesses instrumentos;
  4. o art. 59 prevê que o atingimento das metas estabelecidas na LDO é um dos indicadores de cumprimento da própria LRF.

Ora, excluída a incidência, no caso da União, do § 1º do art. 4º, só restam as metas contidas no anexo previsto no novo art. 9º-A, potencialmente bem mais sintético.

Em suma, as mudanças propostas são profundas e apontam para um relaxamento dos controles exigidos por parte da União. Esse quadro é agravado pela introdução de novas ambiguidades e incongruências na LRF, abrindo espaço para reinterpretações danosas de práticas orçamentárias consagradas. Corre-se o sério risco de que os resultados alcançados sejam o exato oposto do recomendado pela usual designação da Lei Complementar 101/2000.

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A Nova LRF

Infrações dos ditames da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), segundo o art. 73 dessa norma, devem ser punidas conforme o Código Penal, a Lei sobre Crimes de Responsabilidade e a Lei de Improbidade Administrativa, entre outras normas. Inclusive, o descumprimento das metas fiscais contidas na Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2015, como requerido pela LRF, foi um dos fundamentos do impeachment da Presidente Roussef.

No entanto, o § 6º do art. 9º-A, a ser inserido na LRF pelo Projeto de Lei Complementar 93/2023, recém proposto pelo Poder Executivo em substituição ao regime fiscal instituído pela Emenda Constitucional 95/2016, estabelece que o descumprimento das metas fiscais não mais configurará uma infração da LRF.

O projeto também muda de bimestral para trimestral a periodicidade da apuração da compatibilidade entre as despesas e receitas previstas com as metas fixadas, e, em caso de incompatibilidade entre ambos, substitui a obrigação de contingenciar as dotações autorizadas por uma simples autorização.

Caso esses dispositivos sejam incorporados, entendo que também deveríamos atualizar a designação da LRF. Algumas sugestões:

  1. LRPNMF: Lei de Responsabilidade “Pero No Mucho” Fiscal:
  2. LSFC: Lei de Sugestões Fiscais Camaradas;
  3. LSQPF: Lei do Salve-se Quem Puder Fiscal;
  4. LCELF: Lei do Céu É o Limite do Fiscal;
  5. LNHPFAE: Lei Não Haverá Pecado Fiscal Abaixo do Equador; e
  6. LICFEG: Lei do Impeachment por Crimes Fiscais É Golpe.

Curiosamente, os demonstrativos fiscais dos entes subnacionais continuarão sendo publicados bimestralmente e os contingenciamentos requeridos ainda serão obrigatórios. Ademais, os atos de governadores e prefeitos que violem as regras fiscais permanecerão sujeitos aos rigores dos diplomas legais mencionados inicialmente. Optou-se, assim, por ignorar a máxima de Stanislaw Ponte Preta sobre como proceder na ausência da plena restauração da moralidade.

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Os Doze Slides de Haddad

Relevo romano representando nove dos doze trabalhos de Hércules

[Publicado originalmente no site Brasil, Economia e Governo” (versão editada).]

Em 30 de abril último, o Ministro da Fazenda, Fernando Haddad, expôs as diretrizes do novo marco fiscal. Embora a entrevista concedida tenha se estendido por três horas, o documento de apoio utilizado foi muito sucinto. O programa de ajuste combina regras para o resultado primário e para as despesas públicas. As projeções para o resultado primário e as diretrizes gerais do programa concentram-se em um único dos doze slides elaborados, sem qualquer demonstração da compatibilidade entre os dois conjuntos de informações.

Além desse slide, há três perfunctórios (capa, título e contracapa), cinco com considerações acessórias, priorizando resultados dos dois primeiros mandatos do atual Presidente da República, um com projeções para a dívida pública até 2026, com base nos resultados primários projetados para o período, e dois com o comportamento dessa mesma dívida se o seu serviço diminuísse. Mesmo poucos e extremamente sucintos, os slides contém vários erros de formatação, além de várias escolhas duvidosas, como o slide sobre a Lei de Redução da Inflação, dos EUA.[1]

A apresentação feita é uma etapa preliminar do processo previsto na Emenda Constitucional 126/2022, cujo art. 6º estabelece que o Presidente encaminhará ao Congresso Nacional, até 31 de agosto de 2023, projeto de lei complementar com o objetivo de instituir regime fiscal sustentável para garantir a estabilidade macroeconômica do País e criar as condições adequadas ao crescimento socioeconômico. O art. 9º, por sua vez, prevê a revogação do regime fiscal introduzido pela Emenda Constitucional 96/2016 após a sanção do projeto em questão. Com isso deixarão de vigorar os arts. 106, 107, 109 a 112 e 114 do Atos das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT).

O programa proposto é de médio prazo, cobrindo o período de 2023 a 2026, último ano do mandato do atual Presidente. Espera-se que o resultado primário deste ano seja igual a –0,5% do PIB, com uma margem de tolerância de ±0,25 pontos percentuais (p.p.), melhorando outros 0,5 p.p. em cada um dos três anos seguintes.

Informa-se também que as expectativas de mercado para esse mesmo período são de um resultado primário inicial igual a –1% do PIB, melhorando 0,20, 0,30 e 0,27 p.p. posteriormente. Portanto, as estimativas médias dos agentes econômicos mostram-se, até este momento, sistematicamente piores do que as do Governo Federal em –0,5, –0,8, –1,0 e –1,27 p.p.

Estranhamente, o Relatório de Avaliação de Receitas e Despesas Primárias do 1º Bimestre, recém publicado pela Secretaria de Orçamento Federal (SOF), estimou para este ano um resultado primário alinhado com as expectativas de mercado. Ignora-se o que levou o Ministério da Fazenda a adotar parâmetro diferente.

As diretrizes do programa de ajuste fiscal, por sua vez, são:

  • crescimento anual real da despesa primária:
    1. piso de 0,6% e teto 2,5% ao ano (a.a.);
    2. se o resultado primário observar a trajetória projetada: 70% da variação da receita primária dos doze meses anteriores;
    3. se o resultado primário ficar abaixo da trajetória projetada: 50% da variação da receita primária dos doze meses anteriores;
  • exclusão dos valores destinados ao Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundeb) e ao piso salarial nacional dos enfermeiros do controle da variação anual real da despesa primária;
  • eventual resultado primário superior ao da trajetória projetada será canalizado para investimentos;
  • investimentos contarão com um valor mínimo.

      Considerando uma hipótese bastante otimista de crescimento do PIB da ordem de 3%, com a receita primária aumentando na mesma proporção, combinada com o cumprimento da trajetória do resultado primário, o Orçamento Geral da União (OGU) do ano seguinte preveria um incremento de 2,1%[2] nas despesas primárias, salvo aquelas excepcionalizadas. Dessa forma, mesmo em um cenário muito favorável, o teto de 2,5% a.a. não seria atingido. Provavelmente, isso somente ocorrerá mediante altas extraordinárias da receita primária.

      Uma vez que o Ministro da Fazenda destacou, em sua apresentação, que a receita líquida média do Governo Federal, no período de 2003 a 2010, foi de 18,7% do PIB, contra a estimativa de 17% constante da lei orçamentária deste ano (Lei nº 14.535, de 2023), está claro que o Governo Federal conta com um restabelecimento do patamar anterior, embora ainda não se saiba como isso se dará.

      Considerando que o PIB brasileiro é de aproximadamente R$ 10 trilhões, um aumento de 1,7 p.p. na receita líquida equivaleria a R$ 170 bilhões. Como, porém, quase todos os impostos federais são compartilhados com os entes subnacionais e as contribuições sociais são vinculadas à seguridade social (assistência e previdência social, e saúde), além da vinculação de parcela da receita a gastos com saúde, educação e emendas parlamentares, permanece em aberto quanto desse aumento representará uma efetiva elevação da disponibilidade financeira da União.

      Impõe-se notar que eventual elevação da carga tributária não gerará resultados primários superiores aos projetados, uma vez que o programa prevê que eventuais excessos serão canalizados para investimentos. Assim, o teto funciona, basicamente, como um limite apenas para as despesas correntes incluídas no controle da variação anual real da despesa primária.

      No que se refere às despesas excluídas do controle em questão, não parece que estas se limitem ao Fundeb e ao piso salarial nacional dos enfermeiros, disciplinados pelas Emendas Constitucionais nos 108, de 2020, e 124, de 2022. Como recém assinalado, também as ações e serviços públicos de saúde, as emendas parlamentares individuais e de bancada, e as ações de manutenção e desenvolvimento do ensino (arts. 198, 166, §§ 9º e 12, e 212 da Lei Maior) estão constitucionalmente vinculadas à arrecadação federal. Quanto maior a arrecadação, maior o gasto, portanto.

      Especificamente acerca dos gastos com educação e saúde, a revogação do art. 110 do ADCT eliminará a vinculação temporária desses gastos aos pisos apurados em 2017, anualmente corrigidos pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), e restabelecerá a variação conforme, respectivamente, os valores da receita líquida de impostos e da receita corrente líquida. Com efeito, essa revogação resultará na desconstitucionalização da matéria e no restabelecimento da regra anterior, independentemente de qualquer especificidade do novo programa, uma vez que este será disciplinado por uma lei complementar.

      Conforme o Relatório Resumido de Execução Orçamentária (RREO) de dezembro de 2022, o Governo Federal despendeu, no ano passado, R$ 84 bilhões com ações de manutenção e desenvolvimento do ensino. Trata-se de valor superior ao piso atual (R$ 63 bilhões), mas inferior ao exigido pelo art. 212 (R$ 91 bilhões). No mesmo período e segundo a mesma fonte, o Governo Federal empenhou R$ 152 bilhões com ações e serviços públicos de saúde, valor maior do que o ora requerido (R$ 140 bilhões), mas inferior ao demandado pelo art. 198 (R$ 188 bilhões). O quadro a seguir resume o comportamento dos dois gastos e dos pisos correspondentes em 2022:

      Gastos com ensino e saúde versus pisos constitucionais em 2022.

      O novo marco precisará observar os pisos mais altos. Com isso, tendo como base os montantes arrecadados em 2022, os gastos com educação e saúde sofrerão incrementos da ordem de R$ 7 bilhões e R$ 36 bilhões (aumentos de 8% e de 24%, respectivamente). Considerando que o PIB de 2022 alcançou R$ 9,9 trilhões, a nova regra implicará, já no primeiro momento da sua implantação, uma piora de 0,4% do PIB do resultado primário do Governo Federal.

      À luz dos gastos resguardados e dos aumentos assegurados, o conjunto das despesas controladas representa tão somente um subconjunto das despesas primárias. Evidentemente, quanto menor o montante controlado, menor a capacidade efetiva do Governo Federal de entregar o resultado primário prometido, a não ser que este adote um resultado “ajustado”, que desconsideraria uma parcela dos gastos, em prejuízo da transparência das contas públicas.

      Ademais, o valor do salário mínimo, baliza para as políticas assistenciais e previdenciárias, também tem recebido tratamento diferenciado, acompanhando ou superando a variação anual do nível de preços. O anunciado piso para os investimentos, no valor de R$ 75 bilhões, desempenhará papel semelhante. Se essas rubricas, corrigidas segundo regras próprias, integrarem o conjunto de despesas controladas, isso poderá concorrer para o estrangulamento dos demais dispêndios, reproduzindo um dos problemas do atual teto para os gastos primários.

      Expostas a trajetória esperada do resultado primário e as diretrizes do programa de ajuste fiscal, a apresentação simula o comportamento da dívida bruta do governo geral (DBGG), abrangendo os três níveis de governo. No cenário-base, a dívida sobe de 75% do PIB, em 2023, para 77% do PIB, em 2026, sem tendência de estabilização (ou seja, os resultados projetados são insuficientes). No cenário otimista, a dívida atinge 76,5% do PIB em 2026. O acúmulo de obrigações de 2024 a 2026 é residual, mas ainda crescente, demonstrando a insuficiência do ajuste de médio prazo. De qualquer maneira, há sérias dúvidas sobre a robustez desses cálculos. Seria importante que o Governo Federal divulgasse as premissas das suas estimativas.

      O Ministério da Fazenda projeta quedas na razão entre a DBGG e o PIB somente se o serviço da dívida diminuir. Trata-se de um argumento que merece ser visto com muita reserva, pois pode implicar uma pressão indevida da política fiscal sobre a política monetária, no sentido de limitar a capacidade do Banco Central de combater a elevação do nível de preços. Inclusive, algumas análises estruturais apontam justamente para a inflação como um elemento-chave para o sucesso do novo programa. A explicitação de todas as premissas empregadas permitiria esclarecer essa e outras dúvidas. Afinal, sem clareza quanto ao imbricamento entre meios e fins, nem o mítico Hércules, em seus doze trabalhos, daria conta de ajustar as contas públicas brasileiras.


      [1] Inflation Reduction Act, na língua inglesa.

      [2] Alternativamente, um crescimento de 2% do PIB combinado com uma resposta 50% superior da arrecadação geraria o mesmo resultado.

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      O Avô de Sheldon Cooper

      Annie Potts com 38 anos na fictícia Anarene e com 65 anos na também fictícia Medford, ambas as cidades no leste do Texas. Na primeira, com o seu esposo, um barão do petróleo falido; na segunda, já viúva, com o seu neto, futuro coganhador do Nobel de Física pela teoria da “superassimetria”. Parece que no mundo fictício, Jeff Bridges é o avô de Sheldon Cooper. 😛

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      Sobre a Escola Estruturalista

      Seminário “América Latina e a Nova Ordem Econômica Internacional”. No centro, Hélio Jaguaribe e Osvaldo Sunkel.

      No interessantíssimo artigo “Macroeconomics the Latin American Way: Sunkel and the Quest for a Structuralist Model“, o historiador econômico Mauro Boianovsky (UnB) recupera o frustrado esforço do economista chileno Osvaldo Sunkel (1929-) para modelizar matematicamente, ainda nos anos 50 e 60, os pressupostos da escola estruturalista que ele ajudou a fundar. Logo no início, Boianovsky faz a síntese a seguir:

      Latin American structuralism asserted that any attempt to bring inflation down, for a given economic structure, was bound to cause a permanent reduction in the rate of economic growth. The structuralist position was based on the implicit assumption of a non-vertical long-run Phillips curve — in which the relevant tradeoff was between inflation and growth, instead of unemployment. The monetarists, on the other hand, believed on a long-run vertical curve and sometimes even on a negative relation between inflation and economic development. The controversy reached its apex with the 1963 international conference held in Rio, which gathered economists from the region and elsewhere … .

      Destaco a relação, a partir de uma reinterpretação da Curva de Phillips, entre combate à inflação e redução do crescimento. Nada muito diferente do que temos ouvidos do próprio Presidente e de alguns próceres do seu partido. O único problema é que essa discussão se deu antes de sucessivos refinamentos da Curva Phillips, especialmente à luz do período de estagflação da década de 70 nos países desenvolvidos, que combinou inflação e desemprego altos e crescimento baixo, experiência repetida pela América Latina nos anos 80 (conhecidos como a “década perdida”).

      Pollyannamente seria de se esperar que o debate econômico no âmbito do PT já tivesse se atualizado, ainda mais após o malogro da Nova Matriz Econômica do período 2010-2014, mas claro que estou pedindo demais. Entre as evidências empíricas e a melhor teoria, de um lado, e uma boa narrativa a alimentar os nossos sonhos de onipotência e onisciência, de outro, não resta dúvida que iremos optar pela última.

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      “Glass ‘Woke’ Onion”

      Assisti a “Glass Onion” (2022). Visualmente bonito, com personagens caricaturalmente divertidos. A trama, contudo, é claramente, inferior a “Knives Out” (2019). Pior, é uma ótima expressão, a meu ver, do que se convencionou chamar de visão woke do mundo.

      O comentarista conservador Ben Shapiro foi um dos primeiros a fazer uma crítica “política” do filme. E, ao que parece, foi trucidado nas redes sociais. Da minha parte, acho que ele acabou sendo tímido nas suas ponderações.

      Atenção para spoilers.

      Personagens caucasianos heterossexuais sistematicamente retratados como intelectualmente parvos e/ou moralmente débeis? Um par de gêmeas negras monopolizando todo o campo virtuoso, tanto cognitivo, como emotivo, e sendo discriminadas pelos demais? Haja maniqueísmo! Esses, porém, são os aspectos mais óbvios. O que mais chamou a minha atenção são as metáforas que abrem e fecham o filme.

      No início, os convidados são confrontados com um desafio: o convite lacrado. Resolvê-lo requeria tempo e habilidades lógicas e espaciais ou o acesso a alguém com a solução. Vejo nisso um perfeito paralelo com a Teoria Racial Crítica (CRT, na sigla em inglês). O desafio não teria valor em si mesmo. Tão somente simbolizaria uma suposta afetação intelectual, concebida para excluir os que não conhecem os códigos desse meio específico ou que não têm acesso a quem lhes abra as portas. Percebendo a sua exclusão, Helen simplesmente foi ao âmago da questão e destruiu a caixa.

      Isso lembra os campeonatos de debate nos EUA, nos quais os adeptos da CRT se especializaram, com muito sucesso, em desprezar os aspectos intrincados dos temas propostos para se concentrar em abordagens subjetivas com grande apelo.

      Já no final, Helen se vê sem provas concretas de que sua irmã tinha sido usurpada e assassinada. Só lhe restava a “vivência” da injustiça sofrida. Aqui vejo uma típica expressão do assim denominado “racismo estrutural”. Temos uma ordem perversa e incorrigível por meios pacíficos. Assim, Helen estava moralmente justificada ao se insurgir violentamente contra qualquer expressão dessa ordem. E quem melhor sintetiza a cultura ocidental do que a Mona Lisa? Endossa-se, dessa forma, uma estratégia de ação direta que em nada difere dos nossos black blocs de 2013 (e não apenas estes).

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